Bambu no Peito.

E o chinês acordou a mulher cantando. Foi lá mesmo na China, num lugar longe no leste da China, na cidade de Nanjing, onde as tradições milenares têm mais a poeira da idade. Lugar onde se fala o mandarim sem sotaque de cidade grande. Deve ter nascido ali o mandarim, esse caipira do fim do mundo que viaja o mundo.

Mas como é chinesa a paciência. Acordar a mulher cantando, a mulher que ele conhece desde os 10 anos, quando ainda se chamava menina. Ela adora ouvir música, desde os 10 adora. Ele sempre tentou aprender a tocar, tocar a chinesa e a música, melhor se fosse as duas ao mesmo tempo.

Saiu nos jornais do mundo todo e do fim do mundo, ali um pouco antes da China. Saiu lá, perto de onde ela mora, de onde ela saía de casa todo dia pra plantar arroz, colher arroz, comer arroz, sonhando com o dia, mas também podia ser de noite, que ia (não ela, o arroz) cair do céu sobre chineses recém-felizes como pássaros sem gaiola. Ela gosta de pássaros, gosta de escrever, escreve os ideogramas inspirada nos rastros de pássaros, como foram inventados, os tais ideogramas. Inspirada, ela. Inspira ele.

Que amor faz isso, que amor vai tão longe, até a China, e faz isso? Já vi amor-aurora, renasce todo santo dia iluminando a cama. Já vi amor-pólen, faz brotar ternura até em caminho de barro. Já vi amor-ventania, chega sem avisar levando o telhado da razão. Mas aquele amor, amor-chinês, nunca vi.

Passou dez anos estudando música, o chinês. Passaria uma dinastia toda, se precisasse. Dinastia chinesa dura, chinês tem vida longa. Tem bambu no peito, idéia amadurecida, como diz o provérbio chinês. Todo o arroz que ela plantou virou colheita, como é fértil a sabedoria chinesa. Já eram casados há 50 anos.

História rica, história chinesa é rica. O chinês não, não era rico, mas comprou um teclado pra tocar enquanto cantasse. Isso, um teclado. E começou a compor, virou compositor o chinês. Sabe todas as notas, toca cada do-re-mi com suavidade, com movimento chinês, como no kung-fu. Defesa pro amor perdido, o kung-fu.

Dizia que a voz grave do chinês fazia tremer cada pedregulho da Muralha da China, ela. Agora é a voz que treme, é muita idade. Amor maduro não faz barulho, é igual meditação budista o amor do chinês, igual respirar sem ar. Parece a voz do vento o jeito que ele canta sussurrando. Ah, se o vento falasse. Teria a voz do chinês. Ia falar mandarim, o vento.

Tanto tempo e ela dormindo. Dez anos dormindo, dez anos. O chinês sabia que não era sono. Ouviu falar o que era, não quis ouvir direito o que era, tava cantando concentrado, quieto como só chinês fica, ali do lado da cama, da maca, sentado no banquinho de mãos no joelho e barba branca já chegando no joelho, igual só chinês tem. Conversava com a natureza, o chinês. Pedia pro tempo passar mais devagar, assim ela não perdia muito encantamento enquanto dormisse. Encantamento, o chinês chamava de encantamento cada passarinho que chora, cada bebê que pia, cada beijo que nasce no mundo.

E ela acordou, você viu? Acordou, a chinesa acordou. E ainda falou o nome do chinês olhando nos olhos dele, olhos puxados com olhos puxados, não é só a boca que puxa quando sorri. Nem chorou, o chinês. Só piscou, piscou pra ela igual quando tinha 10 anos. Parou o tempo, o chinês. Virou a ampulheta de lado. Botou o dedo no ponteiro. Segurou o gira-gira da Terra. Parou o tempo. Parou. Pra ela acordar tranqüila. Pra plantar arroz. Pra ter mais uma vida toda junto dele.

O que você achou?